6 de jun. de 2011

UMA NOVA POLÍTICA PARA A AYAHUASCA NO BRASIL - SINAL DOS TEMPOS

Escrito por Marcos Vinícius Neves mvneves27@gmail.com Coluna Miolo de Pote
No mês passado recebi da Bia Labate, antropóloga e ativa divulgadora de questões relacionadas à ayahuasca, a encomenda de um texto que atualizasse os acontecimentos relativos ao processo de registro da Ayahuasca como patrimônio imaterial brasileiro. Depois de muitas idas e vindas o texto ficou pronto e já está circulando na net. Não poderia deixar, portanto, de trazer pra cá este novo artigo.

Desde que as comunidades tradicionais da ayahuasca (Alto Santo, Barquinha e União do Vegetal) entregaram ao Ministro da Cultura Gilberto Gil, em 2008, pedido para que seja registrado como patrimônio imaterial brasileiro o “Uso Ritual da Ayahuasca”, as discussões e articulações acerca deste tema tem sido intensas. E nem poderia ser diferente, dado o ineditismo da proposta e o enorme grau de complexidade de uma questão que obrigatoriamente deve considerar e envolver centenas de comunidades religiosas ou indígenas com grandes diferenças entre si.
Em consonância com isso, a Câmara Temática do Patrimônio Imaterial - que tem a função de elaborar parecer prévio antes do pedido ser submetido ao Conselho Consultivo do Patrimônio Cultural (instância do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional que delibera pelo registro, ou não, do bem cultural em apreciação) – indicou a necessidade de realizar um Inventário que possibilite a análise dos contornos, limites e características de um possível registro, uma vez que o farto material bibliográfico que foi entregue junto com o pedido era assistemático.

Atualmente, as instituições culturais públicas envolvidas neste processo – Fundação Elias Mansour (Estado do Acre), Fundação Garibaldi Brasil (Município de Rio Branco) e IPHAN/AC - estão elaborando projeto para captação de recursos e realização do inventário (que pode utilizar as metodologias definidas pelo Inventario Nacional de Referências Culturais) cujo eixo norteador deverá ser uma ampla e profunda participação das comunidades ayahuasqueiras, levando em consideração a extraordinária diversidade de raízes e de manifestações culturais destas.

Por isso, tem havido, nos últimos meses, intensas articulações entre as comunidades ayahuasqueiras que entregaram o pedido ao IPHAN, as instituições públicas acreanas envolvidas neste processo e diferentes representantes indígenas e líderes de centros religiosos ecléticos de forma a pactuar e efetivar a participação de representantes dos três campos ayahuasqueiros (originários, tradicionais e ecléticos) no inventário e, consequentemente, no possível registro de bens culturais a serem definidos.

Como evidentes sinais da oportunidade e importância desse registro devemos levar em consideração os muitos avanços que as comunidades ayahuasqueiras tradicionais acreanas tem conquistado nos últimos tempos. Entre eles, a elaboração e execução de projetos de valorização e preservação da memória em vários centros diferentes; a realização de um grande seminário para debater políticas públicas voltadas para as comunidades ayahuasqueiras (“Seminário das Comunidades Tradicionais da Ayahuasca: Construindo Políticas Públicas para o Acre”, realizado entre 12 e 14 de abril de 2010); a regulamentação pelo estado do Acre, através do diálogo com as comunidades tradicionais acreanas, da extração e transporte de cipó e folha (Resolução Conjunta CEMAC/CFE Nº 004, de 20 de dezembro de 2010), depois de três longos anos de discussão e trabalho.

Além disso, é preciso lembrar que, ainda em 2007, foi criada, no âmbito do Conselho Municipal de Políticas Culturais da Fundação Garibaldi Brasil (Rio Branco), a Câmara Temática das Culturas Ayahuasqueiras. Os integrantes desta Câmara não só participaram ativamente do fértil processo de construção do Sistema Municipal de Cultura de Rio Branco, como a tornaram uma das mais ativas do conselho. Com movimentadas reuniões mensais onde são debatidos problemas e encaminhadas soluções, em articulação com diferentes órgãos públicos ou organizações sociais, para a área da cultura, saúde, educação e meio-ambiente.


No momento está sendo organizado um encontro com lideranças indígenas do Acre, ainda sem data precisa, para que estas possam participar da construção do inventário desde sua concepção, se assim decidirem. Sem esquecer que a questão da ayahuasca entre os povos indígenas é muito mais ampla - panamazônica e plurinacional – e não está restrita aos grupos indígenas da Amazônia brasileira. Assim, a inserção dos índios neste processo de inventário, sem dúvida, aumentou muito sua complexidade, extensão e implicações.  

Ao mesmo tempo, vem acontecendo conversas com representantes de grupos ecléticos para tentar afinar o princípio norteador desse trabalho que sempre foi, e continua sendo, o do respeito e claro reconhecimento das diferenças entre os envolvidos, em prol de um objetivo comum. E, devo esclarecer, isso não é pouco, pelo contrário, vem dando um trabalho danado. Mas, mesmo longo, este trabalho tem se revelado um importante e enriquecedor processo de construção coletiva.

Entretanto, é preciso alertar: erra quem acha que estamos tratando aqui apenas da busca de um reconhecimento formal e inócuo. O objetivo final deste processo, bem definido para todos os participantes, é fazer o inventário sugerido pelo IPHAN, se possível definir que referências culturais constituem o cerne comum entre as diferentes matrizes ayahuasqueiras, registrar estes bens culturais como patrimônio imaterial brasileiro e estabelecer salvaguardas que sirvam ao fortalecimento das comunidades e a preservação destas manifestações culturais.

Porque, afinal, entendemos que as práticas ayahuasqueiras não podem ser consideradas simplesmente como questões a serem reguladas pela política nacional antidrogas, ou definidas apenas pelos parâmetros da biomedicina, e sim tratadas como parte fundamental e indissociável de muitas culturas amazônicas e de nossa identidade nacional. E esta outra forma de compreensão pode resultar em uma grande mudança de paradigmas no nosso país, na Amazônia, e também no mundo. Sinal de novos tempos que começam a se delinear.

Obs: Para quem quiser saber mais sobre este tema recomendo uma visita ao blog, recém criado, da Câmara Temática de Culturas Ayahuasqueiras do Conselho de Cultura de Rio Branco (camaratematicaayahuasca.blogspot.com).

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