17 de jan. de 2010

UM JOGO EM ÁGUAS CLARAS


O domingo prometia.


A cidade de Águas Claras aguardava, engalanada, o início da peleja entre o time do coronel Torres e o Aurora F.C. da cidade vizinha.

O coronel, além de ser o dono do time, era também o Prefeito da cidade, o que lhe dava poderes inimagináveis. Criara o Tanguá F.C. durante a campanha eleitoral e cada jogo equivalia a um comício. O time era formado pelos rapazes da sua fazenda.

O árbitro da contenda ... bem, o árbitro seria o Donizete, único farmacêutico que nunca aplicara uma injeção pois não tinha mão firme para isso. Trabalhava na farmácia de
sua esposa, ou seja, era empregado da própria mulher.

O domingo prometia.

O time visitante chegou bem antes da hora prevista para o jogo e cada atleta recebeu de cortesia, uma garrafa de cachaça, da boa. Também lhes foi oferecido um lauto angu à baiana, mas eles polidamente recusaram. Bastava a cachaça.

Por volta de 13 horas os times se aqueciam ao sol causticante e Donizete, o árbitro, confabulava com os seus bandeirinhas:
- Nosso time, digo, o time do coronel, nunca fica em impedimento. Se vocês assinalarem, eu não vou confirmar.
- Mas o que é impedimento? - responderam juntos os auxiliares ...

O domingo ia ser uma festa.

Marcada para se iniciar às 13 horas, pontualmente às três da tarde o juiz apitou dando início à partida. Não sem antes sortear o lado em que cada time se colocaria. Chamou os dois
capitães e, atirando uma moeda para o ar, perguntou ao jogador do time do coronel:
- Que lado você escolhe?
O capitão do Aurora F.C. esperou que a moeda caísse ao so lo para perguntar:
- Como? - e o ar se encheu com um insuportável cheiro de cachaça, da boa.

O jogador do Aurora pegou a bola no meio de campo e começou sua progressão em direção à área inimiga. O meio de campo do time do coronel "escalou" suas costas e o juiz apitou:

- Cartão amarelo por reclamação! O jogador, com as costas ainda doendo, balbuciou:
- Mas "seu" juiz, foi ele quem "trepou ni mim".
- Se continuar reclamando vai pro chuveiro mais cedo repreendeu Donizete, olhando orgulhoso para o coronel, que sorria no banco de reservas do seu time.

Logo depois, falta indiscutível contra o Tanguá F.C. e enquanto o coronel ficava de pé, Donizete sentia os joelhos falsearem.
A bola foi colocada no local da falta, bem junto à grande área. O coronel entra em campo e dá instruções detalhadas ao juiz.

Não cabia uma palha entre a barreira do Tanguá e o local onde estava a bola. Vai cobrar o capitão do Aurora, vermelho e trôpego, corre, tropeça na bola e cai com a cara em oito pares de chuteiras, que formavam a barreira. Tem que ser substituído, pois não é permitido que um jogador banhado de sangue continue em campo.

Entra o substituto, depois de pedir que alguém tome conta de sua garrafa de cachaça, da boa, já pelo meio.

E acontece o inevitável pênalti, indiscutível já que o jogador teve seu calção arriado pelo adversário no momento em que tentava chutar a gol. Donizete treme. O jogador chuta, o goleiro nem se mexe, a bola entra, Donizete anula. Todos reclamam. Donizete diz que o jogador colocou a bola fora da marca.

- Que marca? Que marca? - reclamam os jogadores do Aurora ao verem que não há marca alguma no local de onde se bate o pênalti.
Donizete aproveita e expulsa um jogador do Aurora por reclamação.

O goleiro do Tanguá chuta para o meio de campo,um jogador recebe e chuta sem olhar pra onde. O bandeirinha cabeceia e um atacante completa,- é gol! Mais queixas. O juiz informa que o bandeirinha é figura neutra e foi a bola que o atingiu,
não ele que cabeceou. Na confusão aproveita para expulsar outro jogador do Aurora.

O jogo é bom.

Com apenas nove jogadores bêbados, o Aurora se aguenta como pode... e empata. Donizete, distraído, só viu a comemoração. Nem teve tempo de anular o gol. O coronel coça o cabo da arma. Donizete sente enorme vontade de ir ao banheiro e
não voltar.

Mas o Tanguá insiste. Bola na área do Aurora. Alguém chuta e Donizete, "acidentalmente" cabeceia ... e é gol!

Como todos reclamam, Donizete expulsa mais dois e acaba o jogo, aos 30 minutos do primeiro tempo.

Agora, é só festejar mais essa vitória do valoroso Tanguá.

Vilaça 02/07/97

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